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Origem do Homem na visão dos Povos Ngalangue e Vié
Origem do Homem na visão dos Povos Ngalangue e Vié

<img src=Junto à confluência do rio Cunhungâmuacom o Cunene, caiu, vindo do céu, o primeiro homem negro. O homem jazia por terra, resfolegando ruidosamente. O seu enorme corpanzil alteava-se e baixava-se com um ruído de água que se despenha. Dormia um sono pesado de quem acabasse de fazer uma longa viagem e, da sua boca entreaberta, semelhando uma caverna, saíam sons estertorosos em ritmo compassado que enchiam de pasmo a Criação que por ali andava a fazer pela vida. Há quanto tempo ele para ali estaria é coisa que se não sabe porque ninguém disso deu fé. Mas quando o sol lhe começou a dar no carão largo e a aquecer o seu enorme corpo, incidindo os seus raios nas órbitas largas e profundas, teve um estremecimento e acordou. Levantou meio corpo e olhou para todos os lados, espantado. Espreguiçou-se e bocejou ruidosamente com um rugido saído das profundezas do seu ser, espantando os bambis que por ali pastavam. O Homem levantou-se a custo e fixou-se nas pernas, enormes como troncos. Espreguiçou-se mais uma vez e olhou à sua volta. O seu corpo era grande, pesado e negro como a noite, e feio, duma fealdade de monstro apocalíptico. A cabeça era quase achatada, uma testa fugidia e grandes órbitas, no fundo das quais se descortinavam uns olhos redondos, escuros e profundos. O nariz achatado alargava-se pela cara larga e lustrosa, onde duas fossas largas e fundas como covis de cauío sorviam o ar com um ruído de vento rugindo. As orelhas, grandes como folhas de mamoeiro, eram quase bicudas e de cujo interior surgiam mechas de cabelo enrolado sobre si mesmo. Os lábios, grossos e vermelhos, arredondavam-se para fora, mal disfarçando a dentadura onde se salientavam quatro colmilhos de animal carnívoro. Os maxilares, dum prognatismo bem saliente, eram reforçados e duros como mós de moinho. A parte anterior da cabeça era revestida de um pêlo encaracolado e duro como cerdas de onguluve velho. O corpo era revestido de pêlo curto de animal bravio, que rareava aqui e além como clareiras abertas ao sol. As mãos amplas, largas, com dedos fortes, nodosos e enrugados como casca de carvalho, terminavam em unhas grossas e arqueadas como garras de animal de presa. O peito amplo, rotundo, onde se adivinhavam através da pele grossa e curtida as costelas arqueadas como cavername de navio.

Boceja ainda e começa a andar num passo incerto e claudicante, afastando os capins altos que lhe impedem o avanço. A criação, que por ali anda, aproxima-se curiosa, vem roçar-lhe nas pernas como a saudar o seu rei. Ele, num gesto vago e inconsciente, passa-lhes a mão pelos lombos luzidios que estremecem ao seu contacto. Aproxima-se, sem o querer, da floresta. Alguns animais, parecidos, possivelmente seus parentes mais próximos, trepam e saltam de ramo em ramo com gritos e esgares, parecendo saudá-lo.

Penetra na floresta, mas os ramos, as lianas, os troncos caídos, toda uma vegetação densa, exuberante de seiva e vida, impedem-lhe os seus passos, enredam-se no seu corpo, cingem-se de tal modo, que não consegue andar. O instinto, que não o raciocínio, leva-o a utilizar-se das mãos. Primeiro, põe-nas à frente do corpo como a defendê-lo das chicotadas, depois serve-se delas estorcegando os ramos que obstinadamente lhe impedem o passo. E assim vai caminhando sem rumo nem destino marcados, como barco que perdeu o governo. O Sol, já a pino, mal penetra naquele labirinto onde só perpassam animais rastejando, com um ruído de folhas secas que se deslocam movidas pelo vento. Com o esforço, o seu corpo começa a transpirar em grossas gotas que, escorrendo, se vão sumir por entre a grenha hirsuta do seu corpo peludo. Sente-se cansado e senta-se num tronco caído. Falta-lhe qualquer coisa que o seu corpo está a pedir e que vem lá de dentro, mas não sabe o que é. Perto, saltita um passarinho de ramo em ramo até poisar em cima de um fruto redondo e amarelo, objecto das suas pesquisas. Olha para um lado e para outro e, depois de alguns pios alegres, denunciadores da sua alegria de viver, começa a debicar o fruto, sorvendo-o deliciado. Feti olha-o espantado, sem compreender o que se passa. Mas as suas glândulas salivares excitam-se perante o espectáculo e exsudam um líquido que, sem o querer, lhe escorre pelos cantos da boca, obrigando-o a deglutir.

Levanta-se e pega num fruto que ali perto está a oferecer-se. Olha-o por todos os lados e dá-lhe uma dentada com os seus dentes aguçados de besta-fera. Saboreia-o deliciado e logo outro e outro tiveram o mesmo destino. Agora, sim. Acabou por descobrir o que lhe faltava. Tinha fome. O seu instinto, mal desperto ainda, e o seu cérebro entorpecido como se tivesse acordado de uma longa letargia, jazem ainda como que obnubilados por vapores condensados que a custo se vão dissipando.

Sente-se farto, satisfeito, mesmo. Depois da sua primeira refeição, tenta avançar naquele dédalo de ramos e troncos que lhe obstruem o caminho e acaba por desistir. Retrocede e segue pelo mesmo sítio por onde passara, agora já mais livre, até atingir a orla da floresta, frente à clareira, onde acordara. Na sua frente, vários animais passam em desfile: bâmbis, nunces, quissemas, golungos, malancas, gungas e outros herbívoros, que se dirigem para o rio a dessedentar-se. Por cima das árvores saltitam símios de todos os tamanhos procurando nelas a sua última refeição, que o sol já vai a declinar. As aves esvoaçam no ar à procura de alimento para si e seus filhos. Os insectos, naquela hora, zumbem freneticamente em sarabanda de zumbidos loucos. O ar enche-se de ruídos dos seres vivos da Criação, num bruhahá indescritível. Feti olha sem compreender, impassível e estático, a Vida passa a seu lado em toda a sua plenitude. Nenhum ser se lhe assemelha. Todos os outros animais caminham a quatro pés e só ele, por uma configuração especial do seu corpo, é obrigado a caminhar em dois. A passagem dos animais deixa no ar uma poeira que se levanta do chão, eleva-se, até que o sol, incidindo de través, se encarrega de adoirar. E éà luz doirada da tarde que vai caindo, que ele assiste ao primeiro drama da luta pela Vida.

Não muito longe ouviu-se um rugido temeroso. Todos os animais se ficam estáticos, cabeças ao alto, voltadas naquela direcção. Outro rugido mais próximo se faz ouvir e então toda a bicharada, como se obedecesse a um mesmo sinal, deita a correr na direcção oposta, desordenadamente, tomada de pânico. Os símios, até aqui palradores, atingem num ápice a sumidade das árvores, que balouça ao vento com o peso, e ali se quedam a espreitar, mudos e inquietos, cheios de medo.

Feti, sem compreender, sente, no entanto, uma vaga inquietação. O seu instinto de animal primitivo diz-lhe que qualquer coisa de anormal se vai passar, que algum perigo se aproxima. Olha para uma árvore e tenta fazer como o seu parente símio: subindo, servindo-se dos pés e das mãos. Mas os seus pés não são dotados de preensibilidade, o que só lhe permite subir à força de pulso e apoiando os pés. No entanto, sobe com segurança e, tanto quanto o seu peso lho permite, atinge as alturas e aguarda, espreitando por entre a folhagem. Dentro em pouco, a meio da clareira surgem vários animais envoltos numa nuvem de poeira e, mais atrás, outros em sua perseguição. É uma manada de búfalos perseguidos de perto por alguns leões. Já um búfalo, mais velho e cansado da corrida, se vai ficando para trás, soltando urros de raiva por não poder alcançar os seus e por saber o que o espera. Um leão mais forte alcança-o por fim e, com uma formidável patada, parte-lhe a espinha e derruba-o. O animal tenta ainda arrastar-se nas patas dianteiras escarvando o chão com ânsia e rugindo de dor, mas outra patada atinge-lhe o cachaço e o animal estrebucha uns momentos, sacode os membros, que se inteiriçam, por fim, e fica-se envolto em nuvens de pó. É logo esfarrapado, estripado, atacado por todos os lados e todos à uma começam a cevar-se naquela carne quente, ainda fumegante. Logo após, surgem as «chimalancas» , os «kimbungos» e os «mabecos» , que querem também tomar parte do festim. Os leões não os deixam aproximar-se, contendo em respeito aquela horda esfaimada, com uns roncos assustadores. Aqueles manifestam a sua impaciência, uivando, ganindo e guinchando, em gritos histéricos de animais em que a fome se não compadece com mais esperas. Até que, por fim, saciados, os leões se afastam, lambendo o pêlo donde o sangue ainda escorre. Os outros então aproximam-se e cada um puxa para si o bocado que tem mais a jeito. Dentro em pouco, já nada resta do búfalo senão a sua carcaça vazia e inútil. Feti contempla lá do alto do seu poleiro aquele espectáculo e compreende. O cheiro da carniça que paira no ar acordou nele o seu instinto de carnívoro. Desejaria também comer daquela carne suculenta e sangrando, mas um medo incontrolável reteve-o. Também sentia fome porque aquele drama passado debaixo dos seus olhos pávidos lho despertara. Mas conteve-se e procurou adormecer entalando o seu corpo entre dois galhos fortes.

Manhã cedo, as estrelas ainda a brilhar, acordou com o cântico da passarada anunciando a chegada de um novo dia. Os macacos, lá em cima, também acordavam e ralhavam uns com os outros, sem causa conhecida. Feti olhou para baixo, por entre a folhagem e, não vendo nada de anormal, desceu lentamente. Da cena da véspera nada existia que a lembrasse a não ser o cavername branco do búfalo, alvejando ao claro sol que se aproximava. As ossadas dispersas lembraram-lhe a tragédia e, por uma associação lenta de ideias vindas lá do fundo do seu subconsciente embrionário, sentiu fome. Também comeria, se pudesse; a questão seria encontrar em que saciar a sua fome. Como que obedecendo aos seus pensamentos, uma vara de “otchorulos” se aproxima, vinda do rio onde fora banhar-se antes de se recolher. Eles vêm na sua direcção, confiantes, e tão perto lhe passam que lhe roçam os corpos enlameados pelas pernas. Quando o maior passa por ele, abaixa-se e pega-lhe por uma perna. O animal, surpreendido, ronca forte como a pedir auxílio. Os outros cercam-no imediatamente, ameaçadores, com as defesas em riste, matraqueando as queixadas, prontos a atacar. Mas Feti com as suas manápulas pega no bicho pelas patas traseiras, levanta-o ao ar e faz dele um aríete, brandindo-o contra os outros. Depois de os ter posto em fuga, deita o animal no chão, segura-o com os pés e, a despeito dos gritos de dor, arranca de um só puxão uma perna e ali mesmo a devora, deliciado.

O bicho, que ele ainda conserva debaixo das suas patas, tem agora uns roncos mais fracos, porque a vida lhe está a fugir do sangue que, em golfadas, lhe sai do seu corpo lacerado tão violentamente. Atrás daquela anca segue-se a outra, que ele segura com ambas as mãos e onde mergulha a cara, sorvendo o sangue em longos haustos, roncando de puro gozo. Sentindo-se saciado, por fim, abandona a carne restante. Já o cheiro da carniça atraiu alguns carnívoros e, entre eles, um lhe desperta a atenção. É um “ombua” , magro, de uma magreza esquelética, de pêlo curto e ruivo que, no seu dar à cauda e nos saracoteios em volta do homem, parece conhecê-lo. Féti passa-lhe a mão pelo lombo em jeitos de serrote, e ele agradece, lambendo-lhe as mãos lambuzadas de sangue. Mergulha as mãos dentro do cadáver, tira-lhe as entranhas e oferece-as ao cão que as devora com fome de muitos dias. Feti afasta-se dali e procura um rio onde se dessedentar. Quando se voltou, notou que o “ombua” o seguia. Foi este o seu primeiro animal doméstico, o único que nunca o abandonou e acompanhará sempre em todas as emergências da sua vida de animal selvagem racional. Depois da cena com o “otchurulo”, o Homem tem dificuldade em prover à sua alimentação, porque todos os outros animais o evitam, fogem dele à sua aproximação por verem nele mais um inimigo a temer. Teve de pedir auxílio à sua embrionária inteligência para se poder manter. E assim, tem de fazer longas caminhadas acompanhado do seu fiel “ombua” que tão providencialmente lhe apareceu. Por outro lado, ele também tem de evitar outros animais que o não respeitam e que não desdenhariam saborear-lhe a sua carne.

Por isso, afasta-se prudentemente de “njamba” que, em grandes manadas, alegres e ruidosas, se encaminham para os rios, retoiçando-se nas águas claras e espelhentas. Evita o mais que pode o “hossi” , com quem não quer medir forças senão quando de todo em todo não puder deixar de ser. E já mais de uma vez notou, no rio, o “ngando” , traiçoeiramente alapado entre duas águas, aguardando pacientemente a chegada do bebedor incauto… Mas apesar de ter tudo quanto lhe baste à sua subsistência, acha a vida sensaborona e monótona. No seu incipiente bestunto, ainda informe e quase vazio de ideias, começa a germinar a de que só para isto não valia a pena ter aparecido neste mundo. Achava que lhe faltava qualquer coisa que ele não compreendia bem o que fosse mas que instintivamente “sabia” dever completar o verdadeiro sentido da vida. Falta-lhe um ser semelhante, mas de todas as peregrinações que fizera não encontrara ninguém e ele via-se condenado a viver só, eternamente, através do Tempo. 

Até que um dia, vadiando pelas margens do Cunene procurando qualquer coisa que satisfizesse o seu apetite, ouviu um cântico que o fez estremecer e arrebitar as felpudas orelhas. Foi-se aproximando devagar, para não ser pressentido, atraído por aquele canto tão mavioso, e verificar quem seria que lhe prendia, daquele modo, as atenções.

Com todo o cuidado, sem um rumor, vai afastando lentamente os caniços da margem que lhe tapam a vista do rio até que, por entre eles, vê– oh! Maravilha! – uma sereia no meio do rio, penteando os seus longos cabelos, enquanto atirava para o ar aquelas notas cristalinas saídas da sua garganta de prata.

O instinto do animal tomado de cio acordou nele instantaneamente e violentamente o arrebatou. Antes que a sereia pudesse fazer algum movimento para desaparecer na profundidade das águas, já ele a tinha empolgado e prendido nos seus braços possantes e cabeludos. De um salto, atingiu a margem e, com a presa bem cingida ao seu forte arcaboiço, leva-a para bem longe dali, sobe as encostas e embrenha-se pela floresta dentro a largas passadas, tanto quanto lho permitem os obstáculos. E bem lá dentro, num recanto e recato misterioso da selva, tendo apenas com testemunhas as estrelas que lá do alto piscavam ironicamente, teve lugar o noivado de Feti com Choia. E ao romper da manhã, Feti, madrugador como sempre, ao abrir os olhos e ao deparar com a sua companheira que o Destino lhe dera e que ainda dormia depois de uma noite agitada, sentiu-se feliz e contente… E das suas goelas de animal primitivo saiu o seu primeiro urro de satisfação… – Ah! A Vida, afinal, era bela e valia bem a pena viver-se!...

Rolaram os dias, algumas luas passaram até que qualquer coisa de extraordinário aconteceu: daquele singular conúbio nasceu um filho que os pais baptizaram com o nome de Galangue, e, passados mais alguns tempos, o casal foi enriquecido com uma filha a que deram o nome de Vié. 

Foram estes dois filhos de Feti e de Choia que deram origem aos dois povos de Galangue e Bié e que ainda hoje têm orgulho da sua original ascendência.

 

Subsídio: JCultura (Pedro Ângelo)

Historicultura 2017